Durante algum tempo naquele curso que não tinha fim, achei que poderia ser feliz fazendo qualquer outra coisa. Poderia passar num concurso para técnico administrativo e trabalhar numa repartição pública, 8 horas por dia, segunda a sexta, folgar nos finais de semana e feriados, chegar em casa e não ter que me preocupar mais. Poderia trabalhar num banco, arrumadinha, de roupa social e salto alto, no ar condicionado. Poderia até nem trabalhar! Mas - não entendia nem por quê - insisti em ser médica.
Aí ontem, domingão, sol no céu, marido dormindo sossegado até mais tarde, aquele aconchego convidativo no meu lado da cama, levanto eu às 5 e meia da manhã para ir ao Memorial dar plantão. Putz! Tanta coisa mais interessante para fazer no domingo!... Tanto tempo que eu não vou à praia!... Que invenção é essa de ser médica? Pegar 2 ônibus para voltar àqueles plantões em que eu fico tanto tempo sem fazer nada, esperando dar a hora de ir embora!... Que tédio!
Acontece que Deus, lá de cima, ria da minha total ignorância quanto a mim mesma. Ria por me conhecer melhor do que eu e saber exatamente o que me deixaria feliz. Estava no Memorial novamente, no mesmo dia de antes, com as mesmas pessoas de antes, porém havia um detalhe: agora eu tinha carimbo. E um carimbo abre todas as portas dentro do hospital!
"Doutora, o médico de ontem esqueceu-se de solicitar esses exames. A senhora pode fazer isso?"
PREENCHE QUE EU CARIMBO!
"Doutora, desde que Juquinha acordou que não pára de sentir febre. O que eu faço?"
VOU PASSAR UM ANTITÉRMICO E DAQUI A MEIA HORA EU REAVALIO PARA LIBERÁ-LO, CERTO?
Ontem, naquele consultório, trabalhando feito um burro de carga (comprovei que o Memorial é, de fato, uma exploração), passando 6 horas sentada sem conseguir levantar para tomar água por causa da fila de meninos doentes e mães apavoradas, descobri que não seria feliz em nenhum outro lugar, mesmo que trabalhasse menos e ganhasse mais: eu sou feliz assim, sendo médica. Sou feliz pegando meus bebês na sala de parto, vendo-os nascer rosadinhos e chorando feito bezerros desmamados. Sou feliz quando atendo uma menina desesperada pela dor na barriga e consigo fazer melhorar receitando algumas gotas de analgésico. Sou feliz até mesmo quando tenho que suturar a perna de um menino de 11 anos, manhoso que só ele, que se arrebentou porque foi desobedecer à mãe (tá vendo? Bem feito!), ainda que por causa desse menino eu acabe saindo do hospital quase às 8 da noite...
E durante todos aqueles anos em que eu reclamava (fato raro!) da vida, Deus olhava e ria, por saber que eu estava indo no caminho certo, mesmo que ele fosse longo e difícil. Nunca achei minha profissão tão linda e interessante quanto agora, depois do meu carimbo, depois que eu mesma posso estabelecer condutas sem precisar da autorização de ninguém. Nunca tive tanta vontade de estudar quanto agora, para saber como conduzir os casos menos comuns. Nunca fui tão feliz!
E o Veleiro, acostumado às minhas lamúrias, precisava saber disso.
Um comentário:
você não imagina o quanto fiquei feliz lendo isso.... bj pra vc amiga
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